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O que Jesus fala sobre o abuso pessoal e autossacrifício

O povo judeu tinha ouvido o que fora dito: “Olho por olho e dente por dente”. Essa lei famosa encontra-se em Êxodo 21, Levítico 24 e Deuteronômio 19. É preciso lembrar dois aspectos a respeito dessa lei.

Primeiro, por mais prescritiva que possa ter sido, ela também era restritiva e, por isso, um instrumento excelente para eliminar vingança entre famílias e guerras entre tribos. Imagine que alguém decepe a mão de meu irmão, e eu vá até lá e corte a cabeça do agressor.

A violência inicial imediatamente aumentou de proporção, e a família do agressor pode achar que tem o dever de honra de massacrar a mim e à minha família. Onde isso vai parar?

Porém, se, em vez disso, o ato inicial de violência é retribuído precisamente no mesmo tipo e no mesmo grau, um olho por um olho e um dente por um dente, isso põe fim à questão.

Em segundo lugar, a lei foi dada ao povo judeu como nação. Não se destinava a ser aplicada por indivíduos na execução de vinganças pessoais, mas pelo judiciário.

Os Fundamentos da Época de jesus

Na época de Jesus, no entanto, esses dois fundamentos eram frequentemente deixados de lado. Tornou-se muito fácil entender a lei como prescritiva e só ligeiramente restritiva. A questão, assim, passou a ser:

Até que ponto posso ir com minha vingança pessoal sem infringir a lei? Pior ainda: a lei estava sendo arrastada para a arena pessoal, em que dificilmente podia promover nem mesmo uma justiça grosseira, antes só rancor, desejo de vingança, maldade e ódio.

Jesus responde com avassaladora autoridade: “Mas eu lhes digo: ‘Não resistam ao homem mau” (5.39).

Como se deve interpretar essa declaração?

A ideia de Tolstói de que não deveria haver soldados, policiais nem magistrados porque eles resistem aos homens maus ficou famosa.

Mas preste atenção no que Tolstói está fazendo: ele está extrapolando a declaração de Jesus para dizer que ninguém pode resistir a um homem mau que esteja atacando uma terceira pessoa.

Por exemplo, por duas vezes estive em uma situação em que minha presença física impediu a violência. Ambas ocorreram tarde da noite num bairro marginalizado de Toronto.

Em uma das ocasiões, um homem estava agredindo uma moça e fugiu correndo quando eu me aproximei. Na outra, um bêbado estava ameaçando com uma garrafa um casal, que se encolhia de medo num canto.

Eu me meti entre o bêbado e o casal e mandei que eles saíssem correndo dali. É claro que o bêbado se voltou contra mim, mas nem tentou enfiar a garrafa na minha cara.

E assim me poupou da necessidade de arrancá-la da mão dele. No entanto, não há como negar que eu sou culpado de resistir a uma pessoa má.

Será que a ordem de Jesus me condena pelo que fiz?

Poucos responderiam que sim. Contudo, muitos cristãos estariam preparados para discutir, com base no que Jesus diz aqui, que nenhum cristão deve jamais resistir ao mal dirigido contra ele.

Portanto, em princípio, nenhum cristão deveria jamais entrar para a polícia ou para as forças armadas. Tais pessoas reconhecem que Deus deu o poder da espada ao Estado (cf. Rm 13.1-7).

Mas concluem que nenhum cristão jamais deveria se encontrar em nenhuma força de segurança ou autoridade civil que lhe exija resistir a pessoas más

Esses pacifistas consideram que qualquer alternativa enfraquece o que Jesus ensina no Sermão do Monte.

Esse problema não é fácil, e não é o que eu escrevo aqui que vai resolvê- lo. Contudo, é preciso levar em conta tanto o ambiente histórico-cultural em que Jesus estava pregando quanto o estilo antitético tão característico de seu discurso.

Por exemplo, Jesus diz em 5.42: “Dê a quem lhe pede”.

Em Cambridge, na Inglaterra, onde apresentei este conteúdo em forma de palestra pela primeira vez, uma grande quantidade de mendigos anda atrás dos alunos, e muitas vezes são até agressivos, exigindo dinheiro, comida ou roupas.

Alguns desses mendigos estão em miséria extrema, e é uma vergonha que não exista um centro de assistência adequado para atender essas pessoas. Mas muitos estão só se aproveitando dos estudantes.

Eles sabem quais são os de coração mais mole, e o que fazem com eles é predação em sentido literal.

Várias vezes fui abordado por alguém me pedindo dinheiro para comprar comida ou pagar um abrigo, mas quando, em vez de dar dinheiro.

Eu me oferecia para ir comprar um prato de comida para o pedinte ou ir com ele procurar um abrigo, ele não aceitava e me respondia com um monte de desaforos.

Eles sempre dizem que querem dinheiro porque estão com fome ou não têm onde dormir; em muitos casos, porém, gastam o dinheiro com bebida.

Será que é responsabilidade do cristão sustentar mendigos profissionais ou pagar a droga que está arruinando a vida de um ser humano?

Quando Jesus diz: “Dê a quem lhe pede”, será que está dizendo que não existem circunstâncias em que essa ordem não se aplica?

Conheço um aluno de pós- graduação de Cambridge cuja terna consciência o fez pensar que sim.

Ele acabou falido por causa disso, quase passando fome, enquanto dava dinheiro para suprir de bebida alcoólica meia dúzia de homens que estariam bem melhor se não bebessem.

No fim, algumas pessoas o ajudaram a entender que suas ações, embora bem-intencionadas, não estavam ajudando nem aqueles homens nem a ele mesmo, além de não honrarem a Jesus nem seus ensinamentos.

Logo, por mais que desejemos seguir a Jesus com seriedade, descobrimos, mais cedo ou mais tarde, que isso implica meditar muito e seriamente sobre o que ele disse e o que não disse.

Talvez não cheguemos à unanimidade em todos os pontos, mas temos de concordar que absolutizar qualquer texto, sem o devido respeito pelo contexto e fluxo de raciocínio.

Bem como por outras declarações de Jesus em outras passagens, tem grande probabilidade de gerar distorções e erros de interpretação.

Do modo que entendo esses versículos, não creio que Jesus tivesse em mente policiais e soldados. O ensino explícito do Novo Testamento em relação a essas profissões tem mais a ver com integridade, contentamento com o salário e coisas assim.

Em vez disso, em Mateus 5.38-42 Jesus está falando de abuso pessoal e sacrifício pessoal, usando a interpretação equivocada da lei do Antigo Testamento como ponto de partida de seu ensino. Os quatro exemplos que ele dá apoiam essa ideia.

O primeiro refere-se a alguém que recebe um forte tapa no rosto com as costas da mão, um tremendo insulto.

O seguidor de Jesus deve estar disposto a levar mais um em vez de revidar.

Há histórias famosas de pessoas cujo caráter foi transformado após a conversão, como, por exemplo, Billy Bray, o pugilista e Tom Skinner, líder dos Harlem Lords.

Antes brigões, hostis e agressivos, depois de convertidos eles se tornaram humildes diante dos insultos e golpes que recebem e não reagem mais a tais agressões (com essa atitude, impressionaram muitos de seus agressores).

Essa conduta é particularmente importante, é claro, quando a violência e o abuso ocorrem em consequência de alguma posição de defesa da justiça (cf. 5.10-12), mas o texto não precisa se restringir a isso.

O segundo exemplo diz respeito a um processo legal em que um homem vai provavelmente perder sua “túnica”.

Uma vestimenta longa que corresponde a um vestido ou terno dos dias de hoje.

O seguidor de Jesus entrega essa túnica também, embora tal traje fosse considerado um bem inalienável segundo a lei judaica (Êx 22.26,27). Obviamente, é pouco provável que houvesse uma disputa judicial por causa de uma peça de roupa.

Mas o que está em jogo aqui é um princípio: precisamos estar prontos a abrir mão até daquilo que consideramos nossos direitos garantidos por lei.

Em outro contexto, Paulo discorre mais sobre esse princípio, quando insiste em que os seguidores de Jesus devem preferir ser injustiçados a entrar em litígio com outro seguidor de Jesus (1Co 6.7,8).

O terceiro exemplo provavelmente se refere à prática romana de exigir que civis realizassem tarefas.

“Se alguém obrigar você a caminhar uma milha, vá com ele duas” (5.41).

Um soldado romano comum podia ordenar legalmente a um civil que o ajudasse, por exemplo, a carregar sua bagagem por uma distância determinada.

Os seguidores de Jesus não devem ficar irritados nem se sentir explorados nesses casos, como se estivessem sendo pessoalmente insultados. Em vez disso, devem aceitar a imposição de bom grado e dobrar a distância.

O último exemplo de Jesus fala de dar e emprestar com boa vontade e alegria. A questão aqui não é a sabedoria ou a tolice de emprestar dinheiro a todo o mundo que venha pedir (sobre isso, veja Pv 11.15; 17.18; 22.26) — como também os pedintes de Cambridge não são a questão em debate.

O tema central da passagem é: Cristo não tolera atitude mercenária, avarenta, mesquinha, que é o análogo financeiro da interpretação legalista de “olho por olho e dente por dente”.

“Dê a quem lhe pede e não volte as costas a quem deseja lhe pedir emprestado” (5.42). Não fique se perguntando o tempo todo: “O que eu ganho com isso?

O que posso conseguir em troca?”

A mentalidade legalista, que tem fixação por represália e pelo que considera equidade, dá muita importância aos direitos de um indivíduo. O que Jesus está dizendo nesses versículos, mais do que qualquer outra coisa, é que seus seguidores não têm direitos.

Eles não têm o direito de pagar na mesma moeda e de executar vingança (5.39), eles não têm direito a seus bens (5.40), nem a seu tempo e dinheiro (5.41,42).

Mesmo seus direitos individuais protegidos por lei às vezes podem ser abandonados. Por isso, seria um erro interpretar a passagem de 5.41 como se ela dissesse, por exemplo, que o seguidor de Jesus deve estar preparado para andar duas milhas, mas nem um centímetro a mais!

O sacrifício individual substitui a retaliação individual, pois foi esse o caminho que o próprio Salvador tomou, o caminho da cruz. O caminho da cruz, não noções de “certo ou errado”, é o princípio de conduta do cristão.

Para que possa aprender mais sobre este tema, leia nosso próximo artigo “O Sermão Monte ao Alcance de Todos”, recomendo que você estude o livro de Carson “O Sermão do Monte” que deu origem a este artigo.

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