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O Sermão do Monte e os destaques paulinos

Equilíbrio – A alegre submissão cristã à autoridade das Escrituras traz consigo o compromisso com o equilíbrio no modo de abordarmos as Escrituras. O cristão deve crer na Bíblia como um todo, uma vez que a revelação posterior complementa e às vezes modifica a anterior.

No próprio Novo Testamento, diferentes autores ressaltam temas que lhes interessam ou que são de particular interesse para os crentes a quem eles ministram. Ao dar-nos esse livro sagrado, Deus não queria nos prover um manual de teologia sistemática nem uma carta ditada.

Em vez disso, ele moveu e inspirou soberanamente homens a escrever narrativas, descrições, cartas, experiências, visões e ordenanças de modo que o resultado fosse um reflexo fidedigno das impressões, análises, pesquisas, convicções e experiências do autor humano — e, ao mesmo tempo, as próprias palavras de Deus.

Sendo mais específico, João não escreve como Paulo; o vocabulário deles é diferente, seus interesses históricos e teológicos são diferentes, cada um tem seu próprio estilo. Deus, no entanto, usa os dois. Por isso, não é aceitável nem lícito opor um ao outro, nem aceitar um como expressão normativa do cristianismo em detrimento do outro.

Desse modo, portanto, a revelação bíblica não é monocromática. Por isso, não deve ser interpretada com esse pressuposto. Com base nisso, temos de aprender a organizar os diferentes raios de luz num espectro contínuo.

O Sermão do Monte contém muitas instruções éticas

antas que algumas pessoas concluíram que ele estabelece uma série de condições a ser cumpridas para que alguém entre no reino de Deus. Segundo essa interpretação, um indivíduo entra no reino porque sua obediência o fez merecer a entrada. Tal dedução é obviamente falsa.

Observamos no capítulo anterior que a insistência de Jesus na pobreza do espírito (em 5.3) aliada à ênfase no pedir a Deus com humildade (em 7.7-11) combinam-se para invalidar essa conclusão. No entanto, é compreensível, para dizer o mínimo, que uma leitura superficial do Sermão do Monte leve o leitor desatento a essa falsa conclusão.

Paulo

Vamos comparar o ensino de Paulo sobre a salvação. Especificamente, examinaremos três elementos dessa doutrina. Primeiro, Paulo insiste em que as pessoas são salvas pela livre graça de Deus, e nada mais. Certamente elas não podem ser salvas por suas obras, pelos méritos que acumulam.

O apóstolo usa os primeiros dois capítulos e meio de Romanos para provar que todos os seres humanos, sem exceção, são culpados diante de Deus. Deus é justo e santo; ele não pode ignorar o pecado e fingir que ele não tem importância. No entanto, Deus é misericordioso e amoroso, logo, não tem prazer em condenar culpados.

Ele age, portanto, em perfeita conformidade com sua justiça e sua graça, envia seu filho para se tornar um homem, Jesus de Nazaré. Jesus, “o Ungido” de Deus (isto é, o escolhido de Deus, seu “Cristo”), como homem obedece voluntariamente a seu Pai em tudo e morre como representante e substituto de pessoas que não poderiam salvar-se por si mesmas.

Deus fez isso “para demonstrar sua justiça no tempo presente, a fim de ser justo e justificador daquele que tem fé em Jesus” (Rm 3.26). “Onde está, então, o motivo de vanglória?”, Paulo pergunta; e responde: “Foi excluído. […] Porque nós sustentamos que o homem é justificado pela fé, independentemente de observar a lei” (Rm 3.27,28).

Em segundo lugar, de acordo com Paulo, essa salvação que vem pela graça de Deus, mediante a fé, não tolera a irresponsabilidade.

Se alguém alega que Deus derrama sua graça proporcionalmente ao pecado (“Mas onde aumentou o pecado, a graça aumentou ainda mais…”, Rm 5.20b) e, por isso continua pecando para que a graça continue aumentando, Paulo rechaça veementemente tal ideia (Rm 6.1ss.).

Além do mais, Paulo argumenta ainda que, como a morte de Jesus cumpriu judicialmente as justas exigências da lei, os discípulos de Jesus, perdoados pelo supremo ato de autossacrifício de seu Senhor, serão controlados pelo Espírito de Deus (Rm 8.1ss.).

Na verdade, somente os que têm esse Espírito e cuja vida o demonstra e todos os que têm esse Espírito e cuja vida o demonstra foram verdadeiramente perdoados.

Em outras palavras, a salvação que Deus dá pela graça não é estática; ela inevitavelmente resulta em boas obras. As boas obras não compram a salvação, mas certamente são consequência dela. A esse respeito, Efésios 2.10 precisa ser ponderado junto com o par de versículos mais habitualmente citados que o precedem:

“Porque pela graça vocês são salvos, mediante a fé, e isso não vem de vocês, é dom de Deus — não vem das obras, para que ninguém se vanglorie.

Porque somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para fazer as boas obras, as quais Deus preparou de antemão para que nós as praticássemos” (Ef 2.8-10). Conforme essa passagem, as boas obras podem ser interpretadas tanto como o alvo da salvação quanto como o teste da salvação.

Em terceiro lugar, do ponto de vista do cristão que olha em retrospecto um período da revelação de Deus mais longo do que o período que havia transcorrido na época dos crentes do Antigo Testamento, fica claro que a lei do Antigo Testamento jamais foi concebida para salvar ninguém.

Ela apontava para a salvação que estava chegando, e fazia isso de várias maneiras. Por exemplo, ela ensinava aos judeus a extensão real de sua culpa (Rm 2.17ss.), assim como a revelação natural e os princípios morais reconhecidos pela maioria ensinaram aos gentios a extensão de seu pecado (Rm 1.18—2.16).

No que diz respeito aos judeus, a lei foi estabelecida como medida temporária até que a promessa da redenção se cumprisse em Jesus (Gl 3.19). Todo o seu sistema sacrificial prefigurava o sacrifício supremo do próprio Salvador.

Por isso, a lei, prenunciando Cristo e combinando a culpa humana e a consciência dessa culpa, foi concebida para levar os homens a Cristo, a fim de que eles sejam justificados pela graça, por meio da fé (Gl 3.24).

De fato, Paulo pode argumentar que ninguém jamais foi salvo pela lei (Gl 3.11) — isto é, tão somente cumprindo o suficiente do que a lei diz.

Construir um modelo em que os pontos positivos de uma pessoa são somados e contrapesados com seus pontos negativos é ridículo de acordo com o critério paulino.

Afinal, o bem deve ser feito sem exceção.

Portanto, não há nenhum mérito em fazer o bem e obedecer à lei de Deus; e deixar de fazê-lo (isto é, a violar a lei de Deus) é um mal tão inequívoco que não temos como remediá-lo.

Aquilo que gostamos de pensar que podemos remediar — isto é, fazer o bem — já é nossa obrigação de qualquer maneira, portanto não pode fazer expiação pelo mal.

Paulo argumenta que, antes mesmo que Cristo viesse e o verdadeiro objeto da fé fosse totalmente revelado, os crentes do Antigo Testamento só eram aceitáveis para Deus com base na graça divina.

A lei antevia a cruz e a ressurreição de Cristo, mais ou menos como o evangelho hoje recorda esses eventos culminantes.

Os crentes do Antigo Testamento, ainda que procurassem obedecer à lei formal, tinham de se aproximar de Deus pela fé — em pobreza de espírito, desejando a graça divina — do contrário, não se aproximavam de forma alguma.

O cristianismo de hoje

É claro que Paulo está se referindo principalmente à função da lei na história do povo judeu. No entanto, tudo isso é válido também no nível individual. Normalmente ninguém grita por socorro para ser encontrado enquanto não sabe ou não suspeite que está perdido.

Ninguém pede perdão enquanto não perceber que está condenado. Ninguém pedirá perdão enquanto não tomar consciência de sua culpa. Estou muito ciente que algumas pessoas se tornam cristãs sem passar por traumas profundos nessas áreas; no entanto, creio que alguns aspectos se aplicam de qualquer modo.

Por exemplo, alguns se convertem porque são atraídos pela irrefutável magnificência do amor de Jesus, manifesta em seu autossacrifício.

Mas isso significa que eles reconhecem que lhes falta algo na própria vida, ou que Cristo tem algum direito sobre eles, ou que existe nele uma superioridade intrínseca que eles mesmos não têm e gostariam de estabelecer como meta. E tenho a impressão de que essas pessoas não são a maioria das conversões genuínas.

Indo um pouco mais longe, diria que o motivo por que atualmente estamos vendo essa porcentagem tão alta de conversões espúrias é justamente porque primeiro não ensinamos às pessoas que elas precisam de Cristo.

Em uma de suas cartas a um jovem que queria saber como pregar o evangelho, John Wesley propõe uma abordagem bem diferente. Ele diz que, sempre que chegava a um novo lugar para pregar o evangelho, começava com uma declaração geral sobre o amor de Deus.

Em seguida, pregava “a lei” (com isso ele queria dizer todos os padrões justos de Deus e a pena da desobediência) da forma mais penetrante possível. Ele fazia isso até que uma grande quantidade de seus ouvintes se visse em profunda convicção de pecado, chegando até a perder qualquer esperança de serem perdoados por esse Deus santo.

Só então ele apresentava as boas-novas de Jesus Cristo.

Wesley explicava a importância salvífica da pessoa, do ministério, morte e ressurreição de Cristo e a verdade maravilhosa de que a salvação é unicamente pela graça de Deus, por meio da fé.

Enquanto seus ouvintes não percebessem que eram culpados e totalmente impotentes para se salvarem, a maravilha e a disponibilidade da graça de Deus não significariam nada para eles. Wesley acrescenta que, depois que um número grande de pessoas se convertia, ele acrescentava mais temas relacionados com a “lei”.

Fazia isso para ressaltar a verdade de que os crentes genuínos têm fome de experimentar a justiça e continuam reconhecendo a pobreza em espírito, confessando que a aceitação deles por Deus depende sempre e somente do sacrifício de Cristo.

Grande parte do evangelismo de hoje pouco se preocupa em saber se Deus nos aceita, está mais preocupado em saber se nós o aceitamos. Pouca atenção se dá a agradar a Deus e muito se pensa se ele nos agrada ou não. Muitos métodos evangelísticos conhecidos são concebidos segundo essas considerações.

Por isso se dá pouca ênfase ao caráter de Deus e aos requisitos do reino e muita ênfase às nossas necessidades. Pior ainda, nossas necessidades são classificadas em categorias eminentemente psicológicas, não morais (alienação e solidão, em vez de amargura, egoísmo e ódio; frustração e medo, em vez de falta de oração e incredulidade).

Como se não bastasse, a paz, a alegria e o amor são pregados como objetivos desejáveis. Essas coisas são desejáveis, mas há dois problemas. Em primeiro lugar, virtudes como paz, alegria e amor podem ser facilmente interpretadas meramente em sentido pessoal, quase místicos.

Por causa disso, o destaque bíblico para a paz com Deus e com os homens, para a alegria no Senhor e o amor persistente, que dá sacrificialmente a Deus e aos homens, se reduz a um brilho emocional e agradável.

Em segundo lugar, essas virtudes precisam estar acompanhadas de virtudes complementares, tais como justiça, integridade, retidão, verdade, humildade e fé.

Imagine um grande cone:

Se a entrada para o reino for apresentada como grande e larga, muitos darão os primeiros passos. Entretanto, logo descobrirão que lá dentro o cone se estreita. Continuar significa livrar-se da carga que levam; as condições determinantes para a entrada são muito restritivas.

Essas pessoas foram induzidas a entrar no cone por muita conversa sobre a vida, o perdão, a paz e a alegria; de repente, descobrem noções mais restringentes. Ficam sabendo do pecado e do arrependimento, da obediência e do discipulado. Não é de surpreender que muitas vezes ocorra uma erupção e um monte de gente saia por onde entrou.

Mas o cone pode estar virado para o outro lado:

Agora, a entrada é muito estreita. Ninguém pode entrar se não estiver sem nenhuma bagagem. Só se entra de acordo com as condições estabelecidas. Uma vez dentro, porém, para sua alegria, a pessoa descobre que os horizontes se expandem e a liberdade aumenta cada vez mais.

Paulo, como vimos, entende que em geral o cone está nessa segunda posição. Ele explica que uma das principais funções da lei é condenar o ser humano. Isto é, longe de prover um código prático com os quais as pessoas possam obter méritos diante de Deus, a lei funciona para expor o pecado e condená-lo.

Paulo escreve: “Ora, sabemos que tudo o que a lei diz, diz para os que estão debaixo da lei, para que toda boca se cale e o mundo todo preste contas a Deus. Portanto, ninguém será declarado justo diante dele pela observância da lei; pelo contrário, mediante a lei nos tornamos conscientes do pecado” (Rm 3.19,20).

Consequentemente, quando uma pessoa se aproxima de Cristo, ela se apresenta despojada de qualquer pretensão de justiça própria, de qualquer alegação de mérito moral individual. Não estou dizendo que o ser humano não tem valor.

Longe disso — cada um de nós é feito à imagem de Deus e, portanto, tem imensa importância, tanto quanto é importante o seu destino eterno. Contudo, diante de Deus ninguém tem nenhum valor moral meritório que lhe garanta perdão, salvação e entrada no reino de Deus.

Em outras palavras, é característico de Paulo ressaltar, de um lado, a salvação pela graça, mediante a fé, e, de outro, a rendição inequívoca com a qual os homens devem se aproximar de Deus.

Cristo

Quantas e quantas vezes o próprio ministério de Jesus reflete as mesmas perspectivas! Ele tem a estranha capacidade de pôr o dedo na ferida ou no maior obstáculo na vida da pessoa com quem está tratando. O jovem rico, apaixonado por sua riqueza, precisa se livrar dela (Lc 18.18ss.).

A samaritana está preparada para falar de religião, mas Jesus traz à baila as relações adúlteras dessa mulher (Jo 4.7ss.). Ele adverte os potenciais discípulos a primeiro calcular o preço de o seguir (Lc 14.25ss.), concluindo suas ilustrações sobre esse assunto com a penetrante declaração:

“Do mesmo modo, qualquer um de vocês que não renunciar a tudo quanto possui não pode ser meu discípulo” (Lc 14.33). Aí está — a extremidade estreita do cone. Essa ideia surge mais uma vez quando ele rejeita voluntários hesitantes ou despreparados (Lc 9.57-62).

É claro que esse é apenas um dos lados da moeda. Também vemos Jesus fazendo convites gerais (veja Mt 11.28-30; Jo 7.37,38), e ele é conhecido como aquele que não esmagará a cana quebrada e não apagará o pavio que fumega (Mt 12.20). Mas isso só significa que ele é benevolente com o esmagado, o ferido, o oprimido e o cansado.

Jesus veio como médico para os doentes, não para os sãos; como o Salvador para os pecadores, não para os justos (Mt 9.12,13). As pessoas alquebradas não precisam de grandes lições sobre pobreza em espírito: elas já aprenderam e agora precisam de palavras de graça e esperança.

Estou chegando agora ao núcleo da questão, no que se refere ao Sermão do Monte. Paulo deixa claro que a lei torna os homens conscientes do pecado, que eles são salvos pela graça, por meio da fé, e que Deus não aceita ninguém que venha com condições e ressalvas.

Paulo explica a função da lei, e o que ele está explicando em Romanos e em Gálatas, Jesus explica no Sermão do Monte.

Não é à toa que o Sermão do Monte começa com a exigência da pobreza em espírito. Ele começa exigindo que os que esperam entrar no reino reconheçam sua falência espiritual, sua necessidade.

Além disso, assim como Paulo, Jesus está explicando algumas relações entre a lei e o evangelho (Mateus 5.17-20), mas faz isso para ressaltar a exigência de justiça no reino. Se a lei do Antigo Testamento ainda tem alguma autoridade vinculativa, ela a tem naquilo que já a cumpriu, isto é, no reino.

Portanto, em certo sentido Jesus está pregando a lei: ele está pregando o alvo para o qual a Lei e os Profetas apontavam. Ao proclamar assim as normas e exigências do reino, ele simultaneamente apresenta aos discípulos genuínos as perspectivas do reino e faz todos os outros dolorosamente conscientes de seus defeitos irremediáveis.

É claro que Jesus está pregando para pessoas que ainda não tiveram de lidar com as consequências da morte dele, nem se alegraram com o fato histórico e os aspectos escatológicos de sua ressurreição. Esse ambiente anterior à Paixão sem dúvida influencia o quanto Jesus lhes diz e em que condições.

No entanto, insisto em dizer que, se o Sermão do Monte for interpretado apenas como um requisito legal para a entrada no reino, ninguém jamais entrará: pode alguém meditar muito tempo em Mateus 5—7 e não se sentir envergonhado?

O Sermão do Monte dá um golpe mortal no nosso senso de justiça própria e nos convida, em seguida, a pedir o favor de Deus (7.7-11), sem o qual é impossível a admissão ao reino.

Ao mesmo tempo, ele faz um esboço do modo de vida daqueles que entram, os que fazem petições a Deus (7.7-11), pedem perdão (6.12) e, pela graça de Deus, encontram não só o perdão, mas também a adequação cada vez maior às normas do reino. Não demora muito para que a vida deles comece a expressar a Lei e os Profetas.

Para que possa aprender mais sobre este tema, leia nosso próximo artigo “O Sermão Monte ao Alcance de Todos”, recomendo que você estude o livro de Carson “O Sermão do Monte” que deu origem a este artigo.

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